Por João Bernardo

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Continuando aqui a reflectir sobre o caminho percorrido, noto que me fui aproximando gradualmente da concepção do dinheiro como linguagem, e decerto contribuiu para isso o facto de em 1995 ter sido publicado o primeiro volume de Poder e Dinheiro, seguindo-se o segundo volume dois anos depois e sendo o terceiro volume publicado em 2002. A plasticidade e a versatilidade das formas pecuniárias ao longo da história haviam-se já tornado para mim uma noção habitual.

Os progressos que consegui desde 1992 até 2014 deveram-se sobretudo à análise da função do dinheiro como articulador social da mais-valia relativa. «[…] no capitalismo a exploração não consiste somente na apropriação final dos bens materiais e dos serviços produzidos pelos trabalhadores, mas também no controle do processo de produção», escrevi no artigo «O Tempo — Substância do Capitalismo», Cadernos de Ciências Sociais (1, 2005) (aqui), e prossegui. «[…] no capitalismo os trabalhadores podem ser expropriados do resultado do trabalho precisamente porque começam por ser afastados do controle sobre o processo de trabalho. Nestas circunstâncias, a autoridade dos capitalistas, antes de incidir sobre a materialização ou a concretização do processo de trabalho, incide no próprio processo, que deve, portanto, ser avaliado plenamente como tal, ou seja, como decurso no tempo. Muito mais fundamentalmente do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista é um controle exercido sobre o tempo» (pág. 96).

E assim apliquei a todo o capitalismo, desde a sua génese, aquilo que, para quem soubesse ver, só começara a ser flagrante com o trabalho virtual. Não se trata do fabrico de bens materiais, porque a produção pode ser desmaterializada ou os bens arderem e transformarem-se em fumo — e será que então a mais-valia se esvai também no ar? Trata-se do controle (exercido pelos capitalistas) sobre um processo e da submissão (dos trabalhadores) a esse processo, entendido como um processo no tempo. «Em última análise, o desenvolvimento do capitalismo consiste numa conjugação de tempos com sentido inverso» (pág. 97). Por um lado o trabalho vai-se tornando progressivamente mais complexo, o que significa que aumenta o tempo de trabalho realmente efectuado dentro das mesmas horas marcadas pelo relógio, enquanto por outro lado se reduz o tempo de trabalho incorporado em cada um dos produtos que o trabalhador consome. A exploração no capitalismo consiste em despender mais tempo do que o tempo que se consome. Os trabalhadores são o centro desta conjugação de tempos com sentido inverso, que constitui o mecanismo da mais-valia e se agrava na mais-valia relativa. «Qualquer trabalhador sabe, embora os teóricos por vezes o esqueçam, que o que ele vende ao patrão é o seu tempo e não a concretização do seu esforço» (pág. 96). Afinal, «o capitalismo tem por base, desde os seus primórdios, não bens concretos, mas processos de trabalho entendidos como processos no tempo. O tempo, não os objectos, é a substância do capitalismo. […] Tudo se resume a tempos e a desfasamentos [defasagens] temporais» (pág. 97).

Na verdade, já uma dúzia de anos antes, no artigo «Depois do Marxismo, o Dilúvio?», Educação & Sociedade (XIII, 43, Dezembro 1992) (aqui), eu havia formulado a noção do tempo como substância do capitalismo. «O trabalho, no capitalismo, não é uma relação entre a pessoa e o objecto. É uma relação entre pessoas, sob a forma de uma produção de bens. […] O que há de comum aos vários processos de produção não é a produção, mas o processo. E processo é tempo. O tempo é a substância das relações sociais capitalistas. […] A operação fundamental na crítica teórica da exploração consiste na passagem de uma concepção de objectos materialmente considerados e de serviços considerados nos seus resultados particulares para uma concepção de objectos, serviços e força de trabalho como incorporadores de tempo de trabalho. O problema da mais-valia é o problema do tempo» (pág. 403). E se demorei a desenvolver esta noção, creio que isso se deveu ao atraso na elaboração de uma noção correspondente de dinheiro. Seria necessário desembaraçar-me da concepção marxista de dinheiro, presa à materialidade e a uma ilusória correspondência entre dinheiro e mercadoria.

Se para compreendermos o desenvolvimento do capitalismo mediante a mais-valia relativa é indispensável analisar o valor em termos de tempo, a função do dinheiro aqui consiste em ocultar o aprofundamento do tempo dentro dos limites horários estabelecidos e ocultar a redução do tempo na produção de cada um dos bens. Em suma, é o dinheiro que torna possível a mais-valia relativa, porque sem a dissimulação de que uma hora de trabalho complexo equivale à concentração de uma multiplicidade de horas de trabalho simples, os trabalhadores opor-se-iam a este refinamento do processo de exploração. No livro Estado. A Silenciosa Multiplicação do Poder (São Paulo: Escrituras, 1998) (aqui ou aqui), depois de ter referido o aumento da produtividade como mecanismo central da mais-valia relativa, mediante o qual o trabalhador ganha mais em termos da quantidade de bens que pode comprar, mas ganha menos em termos do tempo de trabalho incorporado na soma desses bens e que, através do consumo, ele incorpora na sua própria força de trabalho, escrevi: «Uma das principais funções do dinheiro no capitalismo é confundir estes problemas, erguendo um biombo por detrás do qual é muito difícil discernir os tempos de trabalho efectivos. Já Keynes, na Teoria Geral…, referiu apreciativamente esta função do dinheiro. Note-se que a maneira como os sindicatos apresentam as suas reivindicações promove a mesma confusão, pois as remunerações são avaliadas pelos sindicatos em termos do poder de compra dos salários, e não do tempo de trabalho incorporado aos bens adquiridos» (pág. 19). Ora, os sindicatos não poderiam apresentar deste modo as suas reivindicações se os trabalhadores comuns não vissem a questão com os mesmos olhos, o que permite avaliar a eficácia da ilusão pecuniária.

Por isso eu chamei também a atenção, nesse livro, para o facto de o mecanismo da produtividade incluir não só a dialéctica entre a quantidade dos bens e o valor que cada um deles incorpora, mas ainda entre o número formal de horas da jornada de trabalho e o tempo de trabalho realmente despendido, o que confere ainda maior versatilidade à função do dinheiro. De um lado há os bens que o trabalhador consome, do outro lado há o tempo de que o capitalista se apropria. «O segredo da capacidade demonstrada pelos capitalistas de recuperarem os aspectos mais imediatos das reivindicações laborais reside no facto de os trabalhadores se referirem sempre a valores de uso — número de horas da jornada de trabalho e quantidade de bens e serviços adquiridos — enquanto os capitalistas respondem exclusivamente em termos de valor de troca — tempo de trabalho complexo efectivamente executado e tempo de trabalho incorporado aos bens adquiridos» (pág. 19). Faltou-me, porém, mencionar que assim o dinheiro não só cumpre a função de dissimular a clivagem entre volume e valor, mas desempenha igualmente a função de estabelecer um idioma comum entre os trabalhadores e os capitalistas. Mas para isso seria necessário ter entendido o dinheiro enquanto linguagem.

O estabelecimento de uma linguagem capaz de abarcar transversalmente toda a sociedade pode ser observado, quase com a nitidez de uma experiência de laboratório, nos primórdios da colonização capitalista em África. Num capítulo do Democracia Totalitária (São Paulo: Cortez, 2004) (aqui) dedicado à soberania das empresas na origem do colonialismo moderno, preveni que «se não quisermos confundir uma relação social com os seus símbolos pecuniários, devemos entender a exportação de capital como a difusão do sistema de trabalho proletário» (pág. 42). Em seguida acrescentei que «a detenção da soberania permitiu aos colonizadores generalizar formas capitalistas de imposto, que, além de destruírem os sistemas tradicionais de solidariedade fiscal assentes em famílias amplas ou em colectividades de aldeia, obrigavam os nativos a recorrer ao mercado para obter a moeda emitida exclusivamente pelos europeus, a única aceite no pagamento do imposto» (págs. 42-43). Mas por que motivo foram exigidas as formas pecuniárias europeias, em vez de os colonizadores usarem os tipos de dinheiro nativos?

«[…] o que diferenciou este sistema fiscal [o imposto por unidade habitacional indígena, chamado imposto de palhota] de todos os tributos anteriores foi o facto de o seu pagamento dever, em princípio, efectuar-se em dinheiro emitido pelo ocupante. Ora, para obterem o dinheiro com que deviam pagar o imposto, as famílias nativas tinham de vender primeiro alguma coisa aos detentores dessas novas formas pecuniárias. Podiam vender-lhes a sua produção agrícola, mas para isso tinham de cultivar as matérias-primas que as empresas coloniais de importação e exportação estavam interessadas em remeter para as metrópoles. Deste modo os camponeses africanos foram afastados da agricultura de subsistência e precipitados no mercado, onde sofreram duplamente a desigualdade dos termos de troca, tanto no interior do mercado colonial como no mercado mundial» (págs. 48-49). E chegamos aqui ao cerne da questão, ao objectivo crucial do colonialismo capitalista — a proletarização de povos que até então se haviam inserido noutros sistemas de exploração. «Quando, por uma razão ou por outra, a venda dos produtos da economia doméstica era insuficiente para satisfazer a cobrança do imposto, restava aos camponeses uma única coisa para vender, a sua própria força de trabalho, tanto mais que o sistema fiscal os havia levado a descurar a agricultura de autoconsumo e se viam em risco de morrer de fome» (pág. 49). Esta nova modalidade de imposto, cobrado centralmente e que desagregava o tecido social tradicional, serviu de base a uma linguagem comum aos novos exploradores e aos explorados. Mas, para assegurar a supremacia dos colonizadores, o novo imposto tinha de recorrer aos símbolos pecuniários que os europeus traziam consigo e não podia satisfazer-se com as formas nativas de dinheiro, ligadas à sociedade tradicional que o processo de proletarização iria decompor. As novas formas pecuniárias confundiam-se aqui com o novo sistema de exploração. «[…] na maior parte das colónias africanas foram bancos privados quem primeiro se encarregou de emitir e de pôr em circulação o dinheiro que as potências europeias impunham em detrimento das formas pecuniárias locais, e com que obrigavam as famílias nativas a pagar o imposto de palhota» (pág. 56).

Embora recorra a diversas formas pecuniárias, com circuitos diferentes e vários centros de emissão, o capitalismo não subsiste sem uma linguagem que abarque transversalmente a sociedade e, permanecendo ainda no Democracia Totalitária, vou dar um salto no tempo e no espaço e passar do início do colonialismo em África para a modernidade nos países mais desenvolvidos. Procurei nesse livro apresentar numa nova perspectiva o «dinheiro electrónico — definido aqui como os cartões de crédito e de débito e a extensão do dinheiro contabilístico graças a processos electrónicos» (pág. 140). Ora, é raramente entendido que esta forma pecuniária, desmaterializada e de liquidez imediata, consolida as relações de exploração como relações de classe globalmente consideradas e não particularizadas por intermédio de quaisquer bens ou serviços. «Com a generalização do dinheiro electrónico, para a grande maioria dos assalariados nos países mais evoluídos deixou de haver uma separação clara entre o salário mensal e as despesas mensais. Existem dois fluxos paralelos, um dos salários e outro das despesas, e tudo pressiona os assalariados a não distinguirem nem os períodos nem os ciclos relativos desses fluxos. […] Assim, o endividamento tem-se tornado progressivamente mais fácil, a tal ponto que o consumo passou a assentar no crédito. Ora, uma situação de endividamento sistemático contribui para reduzir a capacidade de resistência dos assalariados, e prejudica portanto a sua aptidão para impor aumentos de salários ou para se opor a despedimentos colectivos» (pág. 141). Mas será realmente um salto no tempo ou uma actualização de velhos sistemas? Dever-se-á aquele processo ao suporte virtual do dinheiro ou será o ressurgimento de uma modalidade de indentured servitude que julgávamos já esgotada, em que os trabalhadores residentes numa mesma área e dependentes de um mesmo patrão compravam os artigos de consumo num armazém que era propriedade desse patrão, encadeando assim os ciclos do salário e do crédito? «Em conclusão, um número crescente de assalariados encontra-se numa posição comparável à dos trabalhadores em dívida das antigas minas ou plantações […] As malhas do assalariamento tornaram-se muito mais apertadas, só que já não se trata agora de prender dados trabalhadores a uma dada empresa em particular, mas de ligar de maneira ainda mais drástica o conjunto da força de trabalho à globalidade do modo de produção capitalista» (págs. 141-142).

Quatro anos depois, eu insistia nas «Sete Teses sobre a Actual Crise», Textos de Economia (XI, 2, 2008) (aqui). «[…] também o crédito se tornou hoje um dos mais poderosos instrumentos de controlo dos trabalhadores. Nos países mais desenvolvidos, a generalização do crédito individual e do dinheiro electrónico levou ao desaparecimento de qualquer demarcação clara entre o montante do salário e o montante das despesas, e colocou a globalidade da força de trabalho na mesma situação em que estavam outrora aqueles trabalhadores que se endividavam junto ao armazém possuído pelo patrão. Eles tornavam-se cativos da dívida, como hoje se tornam em conjunto os assalariados dos países mais desenvolvidos» (pág. 18).

Nesta perspectiva, são os circuitos do dinheiro a articular a relação directa entre a globalidade dos trabalhadores e a globalidade dos capitalistas, tanto burgueses como gestores. Um dos principais eixos, se não o principal, das minhas análises do capitalismo é a noção de que a extorsão de mais-valia se localiza no próprio processo de produção, que deve ser considerado como uma estrutura em que todas as unidades particulares se inserem num sistema comum, devido às relações estabelecidas com as condições gerais de produção. E como o consumo de bens e serviços destinados à produção e reprodução da força de trabalho é um elemento constitutivo da mais-valia, ele integra-se também no processo de produção. Ora, se a relação social básica se estabelece entre a globalidade dos trabalhadores e a globalidade dos capitalistas e se esta relação tem como charneira a extorsão da mais-valia, então a repartição da mais-valia entre os capitalistas só pode ocorrer para além do processo de produção e a outro nível. Cabe ao dinheiro a complexa articulação destas globalidades sociais antagónicas, e também de cada um dos seus elementos componentes, num mesmo corpo social.

Por isso eu pude afirmar em A Sociedade Burguesa de Um e Outro Lado do Espelho (Belo Horizonte: Editora UEMG, 2017) (aqui) que em La Comédie humaine, onde as referências pecuniárias são verdadeiramente inumeráveis, «a teia de relações não tem outro material senão o dinheiro» (pág. 88). É essa a mão invisível por detrás do palco. «O dinheiro urdia este “vasto imbróglio”, e aquilo que na Comédie distinguia os seres de elite da massa das marionetes era a capacidade de aproveitar as regras do dinheiro sem lhes ficar submetido» (pág. 489). Convém desde já prevenir que esse meu livro não é uma obra de análise literária, mas de historiografia, tomando o universo de Balzac como uma realidade fictícia que revelou e até antecipou a realidade real. «Exceptuando Séraphîta, o último dos Études philosophiques, situado no limiar entre a comédia humana e a divina, é impossível encontrar em La Comédie humaine um episódio que não esteja permeado pelo dinheiro, “a omnipotência, a omnisciência, a omniconveniência do dinheiro”. O dinheiro que se tem ou se finge ter ou não se tem e se deseja ter, o dinheiro que se ganha ou se perde, todos estes movimentos da fortuna monetária servem para caracterizar cada um dos personagens e para estabelecer relações entre eles» (pág. 105). Afinal, talvez tudo o que escrevi sobre o dinheiro pudesse ter sido escrito apenas baseando-me na leitura da grande obra de Balzac, para quem, em L’Envers de l’histoire contemporaine, «“o avesso” e “a história” estavam ligados numa rede única formada pelas regras da acção eficaz e pelos percursos da circulação do dinheiro, pela espionagem e pelas finanças […]» (pág. 463).

Considerado assim o dinheiro na sua função de articulador dos antagonismos sociais, podemos desvendar as artes de prestidigitação com que se ocultam as manobras sofisticadas de acumulação de capital. Entre as mais perversas contam-se os colossais investimentos efectuados pelos sindicatos. Em co-autoria com com Luciano Pereira, mostrámos no Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008) (aqui) que uma das novas formas de investimento dos sindicatos, muito difundida, sobretudo nos Estados Unidos, resulta de um processo em que os dirigentes sindicais negociam uma redução das remunerações, tanto no montante do salário como em assistência médica ou noutros serviços, e em troca os trabalhadores recebem acções da empresa. «O importante nas condições jurídicas desta operação é que os trabalhadores só formalmente ficam na posse das acções, pois não podem movimentá-las nem usá-las como suas, pelo menos durante prazos relativamente longos. Ou seja, o controle sobre as acções cabe aos dirigentes sindicais, o que converte este sistema numa modalidade de capitalismo sindical» (pág. 43). As acções, como qualquer título de propriedade, são uma forma pecuniária, que agiliza e ao mesmo tempo encobre esse agravamento da exploração. Temos aqui mais um exemplo da plasticidade do dinheiro. «Em poucas palavras, […] aquilo que os trabalhadores deixam de ganhar converte-se em capital nas mãos daqueles mesmos sindicalistas que haviam negociado a diminuição das remunerações» (pág. 46). O capital é uma relação social de trabalho, e neste tipo de casos o dinheiro serve para articular uma transferência complexa de sujeitos num dos lados da relação. Ora, o êxito destas operações e a sua difusão confirmam a eficácia da ilusão pecuniária. «[…] a conversão das reduções salariais em capital tem continuado a apresentar-se como uma experiência tentadora para muitos dirigentes sindicais e para muitos administradores de empresa, e as oportunidades que este sistema proporciona aos investimentos capitalistas dos sindicatos não se limitam aos Estados Unidos» (pág. 62).

Aliás, referindo-me a esse tipo de aquisição nominal de acções pelos trabalhadores de uma empresa, eu havia já comentado duas décadas antes, no Capital, Sindicatos, Gestores (São Paulo: Vértice, 1987): «O capital não é uma questão de propriedade formal, mas de eficácia no controle. Os trabalhadores financiam, sem dúvida, a aquisição das acções, mas só num sentido humorístico […] poderão considerar-se como proprietários do capital» (pág. 29). Os dirigentes sindicais ampliam então a sua função de administradores, desenvolvendo-se esta modalidade de capitalismo dos sindicatos. «[…] foram os dirigentes sindicais a ascender à gestão das empresas, ou a nela participar de mais perto, precisamente porque foram eles que impuseram aos trabalhadores a redução dos salários e regalias, a alteração das normas de trabalho, enfim, o acréscimo da exploração. […] é com as verbas que os trabalhadores podiam ter ganho, mas não ganharam, com essa diferença entre os salários normais ou previstos e os salários reduzidos, que as direcções sindicais sustentam a sua ascensão nas hierarquias de gestão capitalista. Os trabalhadores financiam a aquisição de capital pelos dirigentes sindicais» (pág. 48). E resumi numa formulação simples. «Aquilo que os trabalhadores deixaram de ganhar constitui o capital de que os sindicatos se apropriam» (págs. 53-54).

Assim, pouco a pouco, abordando a questão por lados diferentes, fui delimitando o problema e aproximando-me de uma solução. «Fala-se agora muito de “capital especulativo”, aparentemente ignorando, ou esquecendo, que esse era um dos conceitos típicos da extrema-direita fascista ou fascizante durante as décadas de 1920 e 1930», escrevi nas «Sete Teses sobre a Actual Crise». «São numerosos os que na esquerda marxista, com toda a candura, reproduzem hoje aquela terminologia e, o que é pior, aquelas ideias. No capitalismo não há contraposição entre produção e crédito; aliás, já não o [sic] havia no mercantilismo, pelo menos no que dizia respeito ao crédito assegurado pelos mecanismos fiduciários. A função do crédito é agilizar a produção, e quando ela atinge a complexidade actual os mecanismos financeiros não podem igualmente deixar de ser muito complexos e sobretudo muito diversificados. Além disso, numas circunstâncias em que o quadro nacional das economias foi ultrapassado e em que, de qualquer modo, a emissão da moeda clássica é perfeitamente insuficiente para as necessidades, os bancos e as demais instituições financeiras vêem-se a todo o momento obrigados a criar novas formas de dinheiro bancário, e fazem-no directamente no âmbito transnacional em que operam» (pág. 15). Em vez de ser fictício ou especulativo, o crédito é essencial para a reprodução e a ampliação do sistema.

Se recapitularmos a pluralidade de funções que o dinheiro desempenha no capitalismo, a variedade e a plasticidade das suas formas e a sua independência relativamente a qualquer tipo de suporte material, podemos entender melhor que a noção do tempo como substância do capitalismo, que eu tratei nos dois artigos de 1992 e 2005, requer uma concepção de dinheiro desmaterializada. O dinheiro no capitalismo não depende do suporte nem sequer exige um suporte. Mas assim, reduzida a função pecuniária a uma simples noção mental, o dinheiro só pode ser entendido enquanto linguagem. Porém, se esta conclusão estava pressuposta, ela não foi dita.

No entanto, num curso ministrado em Julho de 1995 a um conjunto de nove sindicatos, federações sindicais e organismos afins, no âmbito da CUT (Central Única dos Trabalhadores), e reproduzido em A Reestruturação Capitalista (Belo Horizonte: Escola Sindical 7 de Outubro, 1995), eu dissera: «O dinheiro tem sido muitas coisas, consoante as épocas. Para nos restringirmos ao capitalismo contemporâneo, o dinheiro pode definir-se melhor como um elemento de um sistema de informação» (pág. 18). Escrevi praticamente o mesmo no Transnacionalização do Capital e Fragmentação dos Trabalhadores (São Paulo: Boitempo, 2000) (aqui), limitando-me a reformular a última frase e a afirmar que «o dinheiro pode definir-se como um elemento de um processo de veiculação de informações» (pág. 44). Mas o que é um processo de veiculação de informações senão uma linguagem?

E não se aplica exactamente ao dinheiro a noção de linguagem proposta por Jean Pierre Faye? Vejamos o que escrevi no capítulo «A Complexa Arquitectura da Futilidade», em Rosilene Horta Tavares e Suzana dos Santos Gomes (orgs.) Sociedade, Educação e Redes (Araraquara: Junqueira & Marin, 2014) (aqui). «Invocando Roman Jakobson, que considerava que um mesmo processo de dupla articulação presidira tanto ao aparecimento da linguagem como à produção de utensílios, Jean Pierre Faye propôs a tese de que a história é inseparável das formas da sua narração […] A linguagem, para Jean Pierre Faye, não flutua no plano das ideias, mas constitui a própria articulação das relações sociais, tanto das relações reais como das imaginárias. […] posso cingir-me aqui ao modelo exposto por Faye, para quem a produção e a troca económicas operam mediante a produção e a troca de linguagem, e simultaneamente estas produção e troca de linguagem inserem-se na trama económica, de maneira que as relações sociais de produção e de troca devem ser definidas como relações de linguagem, estabelecidas na forma activa de narração» (págs. 68-69).

Estava tudo dito aqui, faltou apenas a palavra dinheiro, porque se na esfera económica a linguagem articula a produção e a troca, e se a linguagem, mediante esta sua função articuladora, se insere no sistema económico, então que linguagem pode ser essa senão o dinheiro? De novo me interrogo sobre os motivos por que os pequenos passos são muitas vezes os mais difíceis. Mas é certo que em 23 de Setembro de 2010, na quinta parte de um extenso ensaio publicado no Passa Palavra, eu já dera pela primeira vez o passo óbvio, como veremos no capítulo seguinte.

Nota: Nas citações dos meus textos publicados no Brasil ajustei a ortografia ao uso português anterior ao actual acordo ortográfico.

A ilustração em destaque reproduz uma obra de Quentin Matsys (1466–1530).

 

 

O leitor interessado pode encontrar aqui o primeiro capítulo, o segundo capítulo, o terceiro capítulo, o quinto capítulo, o sexto capítulo, o sétimo capítulo, o oitavo capítulo e o nono capítulo.

1 COMENTÁRIO

  1. Deixo um comentário adicional sobre o imposto de palhota, porque específico de Moçambique. Ele pode ser comparado, como reforço à hipótese desta parte do ensaio, ao impôt moralisateur imposto pelo marechal francês Joseph Gallieni quando à frente da administração colonial francesa de Madagascar como governador-geral (1896-1905).

    Há registros (cf. David Graeber, Dívida: os primeiros 5.000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016, pp. 69-70) de que os malgaxes de então trabalhavam em troca de dinheiro francês para pagar o imposto, pagavam-no e evitavam usar o dinheiro francês excedente para comprar artigos nas lojas locais. Era uma forma provisória de resistência malgaxe à colonização nas primeiras décadas, por entenderem a armadilha que se lhes colocava; em vez de usarem o dinheiro francês excedente para comprar qualquer coisa nas lojas locais (reforçando o sistema francês de dominação), entregavam-no integralmente aos mais velhos das aldeias, que o trocavam por gado de outras aldeias, para enfim destinar este gado a sacrifício. Em suma: pagavam o imposto e retardavam o retorno do dinheiro francês a circuitos mais ampliados da economia; ao manter a circulação de dinheiro francês estritamente entre malgaxes, e ao destiná-lo estritamente à compra de gado para sacrifício, bloqueavam a circulação do dinheiro excedente, retardando em décadas a formação de um mercado local baseado em dinheiro francês.

    O mecanismo de imposição de novas formas de dinheiro (e de exploração) por meio de tributação era sistemático nos processos de imposição das administrações coloniais na África que terminaram sistematizados e regulados pela Conferência de Berlim (1884-1885). Também eram sistemáticas certas formas de resistência que, entendendo como armadilhas tanto a imposição de certos tributos quanto a exclusividade de seu pagamento com dinheiro dos colonizadores, terminavam tendo como consequência a desvalorização do dinheiro do colonizador, ou a restrição de sua circulação a âmbitos muito pequenos (para evitar transformá-lo em medida geral de valor). Valia tudo: destruição de dinheiro, ritualização, ocultamento, etc. No fim das contas, em casos mais extremos, terminava sendo a força o único meio de impor a circulação do dinheiro do colonizador.

    Tudo isso reforça o que se afirma no artigo porque são fatos muito conhecidos na antropologia econômica e na história da colonização da África.

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